JOÃO BATISTA DE MEDEIROS
UM
H E R Ó I
D E
V E R D A D E
(CONTO)
BRASÍLIA/2016.
A guerra
acabou. O inimigo foi vencido. O soldado mais velho do batalhão nada mais tem a
fazer no exército. Fora convocado para defender seu país, que havia sido
invadido por uma nação vizinha. A guerra foi longa. Foram vinte e cinco longos
anos de batalhas. Sobrevivera a tudo, e agora estava livre para voltar para
casa, rever os familiares, conviver com amigos, descansar.
Vestindo um velho uniforme de
campanha, mochila nas costas, saindo pelo portão principal do quartel, pensou:
- Servi
ao Exército de meu país por longos vinte e cinco anos! De soldo de final de
carreira recebi quinhentos mil réis; os descontos consumiram quatrocentos mil
réis! Sobraram apenas minguados cem mil réis! Com esse dinheiro não consigo nem
comprar roupas civis para usar. Preciso chegar logo em casa, do contrário
passarei fome.
O soldado velho caminhou por dias
seguidos. Ao cair da tarde do terceiro dia sentiu-se muito cansado. Deitou sob
a sombra de uma árvore frondosa, e adormeceu profundamente.
Sonhou que Deus, o Todo Poderoso,
lhe apareceu. Tinha a figura de um homem idoso, de longas barbas e era calvo.
Tinha uma fisionomia muito serena e, falando pausadamente, recomendou:
- Soldado Velho, acorda nas
primeiras claridades do dia que virá, e segue em tua viagem. O teu velho Rei
está precisando de ajuda! Vou te emprestar um cavalo muito especial, que
apressará a tua viagem. Recomendo que sigas os conselhos dele.
O Soldado Velho acordou
impressionado. Por que Deus nosso Senhor, o Todo Poderoso, viria ao seu
encontro ali naquele lugar, e lhe daria um cavalo? Concluiu que foi apenas um
sonho. Se fosse algum oficial, mas o Todo Poderoso a se interessar por alguém como
ele, que serviu ao exército durante vinte e cinco anos. De soldo final recebeu
quinhentos mil réis, que após os descontos de quatrocentos réis, sobrou apenas
cem mil réis...
Ainda sonolento, levou um enorme
susto quando olhou e viu, a cerca de cem metros dele, um lindo cavalo tordilho
negro, encilhado, pastando mansamente. O animal parou de pastar e levantou a
cabeça na direção do Soldado Velho e relinchou. Veio a trote na direção dele.
Com ar de preocupação, pensou o soldado:
- Será que o Todo Poderoso
resolveu me ajudar mesmo? Ou será que o cavalo pertence a algum viajante que o
deixou escapar?
Prudente, decidiu:
- Vou esperar por algum tempo. O
dono desse cavalo logo vai aparecer e o levará embora.
Passaram-se algumas horas e o
cavalo, que voltara a pastar, veio lentamente se aproximando do Soldado Velho.
Quando o animal estava a alguns metros, sacudiu a cabeça e soltou um novo
relincho.
- Será que esse cavalo foi mesmo
mandado pelo Todo Poderoso? Acho que não. Não acredito em sonhos!
E o Soldado Velho se aproximou do
lindo cavalo, segurou nas rédeas e ele permaneceu dócil, submisso. Preocupado,
o Soldado Velho olhou para todos os lados, buscando ver alguém a procura do
cavalo. Não vendo ninguém, pensou:
- Tenho de tomar uma decisão. Se o dono
aparecer e reivindicar a propriedade deste cavalo eu o devolvo para ele. Até
lá, vou usá-lo para chegar mais rápido em casa.
O Soldado Velho esperou meia hora e
resolveu montar. Surpreso, viu o cavalo seguir na direção norte, exatamente
para onde ele deveria seguir. Bastante curioso com o que lhe estava
acontecendo, o Soldado Velho esporeou o cavalo e seguiu viagem.
Haviam percorrido alguns quilômetros
quando chegaram às margens de um rio caudaloso. Percebeu que a correnteza
estava muito forte, quase impossível de atravessar.
Preocupado, ia desmontar quando
ouviu uma voz que dizia:
- Soldado Velho não está vendo que
aquela família inteira está em grande perigo e prestes a ser levada pelas
águas?
Surpreso, o Soldado Velho olhou em
volta tentando saber de onde vinha àquela voz, e mesmo sem entender, respondeu:
- Que família? Não estou vendo ninguém.
A voz respondeu: - Aquela ali, na
beira do rio. Não vê que as águas logo atingirão o formigueiro, e a família
inteira será levada pelas águas?
Contrariado, o soldado Velho
retrucou:
- Ora! São apenas formigas! Que se
lixem! Vou interromper minha viagem só para salvar formigas?...
E a voz insistiu: - E porque não
salvá-las? Elas também são seres criados pelo Todo Poderoso!
Foi quando o Soldado Velho se deu
conta de que não sabia quem estava dialogando com ele:
- Mas, afinal de contas, quem é
que está falando comigo? Não vejo ninguém por perto. Ouço claramente que alguém
está falando! Por acaso é você, cavalo? – Falou em voz alta.
Quase perdendo a paciência o cavalo
respondeu:
- Claro que sou eu, Soldado Velho!
Estou aqui muito recomendado pelo Todo Poderoso para te ajudar a conquistar a
felicidade, e também proteger o teu Velho Rei.
Ao perceber que era mesmo o cavalo
quem falava, o Soldado Velho levou um susto tão grande que caiu no chão. O
cavalo falou com energia:
- Vamos, Soldado Velho, levanta e
vai salvar aquela família. As águas estão se aproximando perigosamente!
Resmungando, contrariado mesmo, o
Soldado Velho se levantou e foi ajudar a família de formigas:
- Ora vejam só! Servi ao Exército
durante vinte e cinco anos. De soldo final recebi quinhentos mil réis. Os
descontos levaram quatrocentos mil réis. Só restaram míseros cem mil réis!... Agora
tenho de salvar formigas! Só espero que elas não venham a me morder...
Recolhendo pedras e galhos de
arbustos ele conseguiu escorar o formigueiro. Serviço feito sentou-se para
descansar. Logo a sua atenção foi chamada por uma formiga muito grande, que se
apresentou como o rei daquele formigueiro, e falou para o Soldado Velho:
- Bom e querido amigo, toda a minha
família está muito agradecida pela tua ajuda. Aqui está um fio de minha barba.
Recolha-a, e guarde-a muito bem. Se um dia precisar de ajuda, basta jogá-la ao
alto e dizer: - “Valha-me Rei das Formigas!” - Logo toda a minha família
comparecerá para ajudar no que você precisar.
Espantado, olhos arregalados,
guardou na carteira a minúscula lembrança. Montou o cavalo, atravessou o rio e
seguiu viagem.
Foram cinco dias cansativos de
viagem. A tarde estava pelo meio, quando avistou uma casa na beira da estrada.
Não querendo incomodar os moradores, o Soldado Velho deu de rédeas no cavalo e
o esporeou para seguir a diante. O cavalo não obedeceu.
- Soldado Velho não percebeu que
existe algo estranho nessa casa? Sai fumaça da chaminé, mas ela parece
abandonada. Isso não chama a sua atenção? - Contrariado e cansado da viagem ele
respondeu: - Não vejo nada. Porque iria me preocupar? Deve ser gente que não
gosta de receber visitantes...
O
cavalo insistiu:
- A porta da frente está
entreaberta. Vá lá e verifique se está tudo bem.
Obediente o Soldado Velho desmontou
e caminhou em direção a casa. Chegando diante da porta gritou: - Ô de casa! Tem
gente aí?
Como não obteve resposta, voltou
para junto do cavalo, e quando ia montar o cavalo falou: - Soldado Velho,
porque você não volta lá e entra na casa? Alguma coisa deve ter acontecido com
os moradores.
Contrariado argumentou o soldado
velho:
- Ora, Cavalo, não venha ensinar o
que devo fazer!...
Apesar de contrariado, virou as
costas para o cavalo e seguiu caminhando firme em direção a casa. Deparou com uma
mulher amordaçada e amarrada em uma cadeira. Atordoado, perguntou:
- O que a senhora está fazendo aí,
amarrada e amordaçada?... Mas como eu sou burro! Como ela vai me responder?
Tratou de desamarrar a mulher que,
se sentindo livre, falou:
- Graças ao Todo Poderoso! Foi Ele
que trouxe o senhor! Fui assaltada por vários homens, que levaram toda a comida
que eu tinha em casa.
Fugiram deixando-me amarrada aqui, para morrer de fome. Ainda
bem que o Senhor chegou a tempo!
Atencioso, ele prossegue na ajuda à
mulher: - Fique calma Dona, tenho lá nos meus arreios bastante carne seca. Vou
buscar e a senhora faz uma comida para nós.
Foi só quando ele chegou junto ao
cavalo que lembrou que havia comido a última porção de carne seca que trazia.
- E agora, cavalo, o que é que eu
vou dizer para ela? Afirmei que tinha carne seca. Vim buscar, e agora me lembro
de que não sobrou nada! – perguntou o Soldado Velho.
- Procura na mala de viagem, junto
aos pelegos, pois o Todo Poderoso poderá nos ajudar nesse aperto... – respondeu
o cavalo.
Contrariado e resmungando contra a
ordem recebida, ele procura:
- Vejam só! Eu, o Soldado Velho
que serviu no exército por vinte e cinco anos... Não é possível! Aqui tenho o
melhor pedaço de carne seca que já vi! De onde esta carne saiu, cavalo?
- Ora, Soldado Velho, pare de
resmungar e vá logo levar essa carne seca. Essa mulher está morrendo de fome! –
retrucou o cavalo pacientemente.
Após uma boa refeição, o Soldado
Velho se despediu, e quando estava na porta de saída, a mulher chamou:
- Bom homem, por sua generosidade e
respeito, lhe darei um presente muito importante. Trata-se desta espada. Ela
foi de meu bisavô, que a deu ao meu avô, que por sua vez passou para o meu pai.
Sempre soube que ela é uma espada mágica e que somente um homem honesto,
bondoso, respeitador, quando injustiçado poderá usá-la para salvar-se de um
grande perigo! Basta erguê-la para o céu e dizer: - “Valha-me Deus Todo
Poderoso!” - Mas não esqueça: Só quando estiver em grande perigo de vida!
Agradecendo, o Soldado Velho saiu,
montou o cavalo e retomou sua viagem.
Já era bem à tardinha, muitos
pássaros revoavam em direção aos seus ninhos, e o dia começava a se despedir,
dando boas vindas às primeiras estrelas da noite, quando o Soldado Velho, muito
cansado, decidiu pernoitar, agora já nas cercanias de sua cidade natal.
Ao longe já vislumbrava os telhados
das casas. Desvencilhara o cavalo e o soltara, dizendo:
- Não sei até agora quem é o teu
dono, e nem sei de onde vieste. Vou te deixar solto enquanto durmo um pouco. Se
quiser podes voltar para o teu dono. Sou muito grato por tudo. Amanhã cedinho
estarei em minha casa. Que o Todo Poderoso te guarde sempre!
O cavalo respondeu: - Apascenta-te,
Soldado Velho, dorme e descansa bem que eu ficarei aqui velando pelo teu
sono... Isso se ninguém resolver te incomodar...
A noite transcorreu na maior
tranqüilidade. Ao clarear do dia, quando tratava de se levantar, soldados o
rodearam e lhe deram voz de prisão:
- Estás preso em nome do Novo Rei!
Sua Majestade recomendou que ninguém deve se aproximar da cidade sem se
identificar. Quem é você?
- Eu sou o Soldado Velho. Servi no
exército por vinte e cinco anos. De soldo final recebi quinhentos mil réis. Os
descontos levaram quatrocentos mil réis, sobrando para mim somente cem mil
réis. Estou voltando da guerra e espero rever a minha família... – respondeu o
Soldado Velho.
E os soldados continuaram:
- A guerra acabou lá fora. Aqui em
nosso país não. Tenho ordens para levar preso todo e qualquer soldado que se
aproximar da cidade! Siga-me!
E lá se foi o Soldado Velho, agora
prisioneiro.
Levado à presença do Novo Rei, foi
condenado à morte por enforcamento, sob a acusação de que era um aliado do
Velho Rei.
Na sentença, dizendo-se magnânimo, o
Novo Rei colocou como forma de evitar a forca, o cumprimento de uma tarefa
especial: separar os grãos de duas arroubas de arroz com casca de outras duas
arroubas de trigo, que estavam misturados. Com um sorriso irônico no rosto,
falou:
- Amanhã, ao clarear do dia, virei
conferir. Caso não tenhas conseguido separar grão por grão, determinarei o
cumprimento da pena, que será diante de meus súditos, para que eles saibam que
o seu novo Rei tem autoridade.
O pobre Soldado Velho, não tendo
conseguido encontrar com seus familiares, pensou:
- Onde poderei encontrar ajuda
para separar os grãos?
Lembrou
que, quando estava no exército, trabalhou muito escolhendo o feijão, que era
cozido para alimentar os soldados. Mas, duas arroubas de grãos era demais.
Nenhum ser humano conseguiria cumprir essa tarefa. Foi quando ele se lembrou do
cavalo que, durante o seu sonho, o Todo Poderoso emprestara para ele. Implorou
ao carcereiro permissão para ir até as baias, onde estavam os cavalos
apreendidos pelo rei. Foi lá e encontrou seu amigo. Encostando-se nele,
choramingou:
- Cavalo, imagine que o Novo Rei
deu-me a tarefa de separar duas arroubas de grãos de arroz e trigo, que foram
muito bem misturados. Como sei que não vou conseguir, serei enforcado amanhã ao
amanhecer. Por isso vim me despedir.
- Não chore Soldado Velho. Lembra-se
daquela família de formigas que você salvou das águas? Chegou à hora de chamar
o Rei das formigas. Ainda tens o fio de barba que ganhou? – perguntou o cavalo.
- Tenho sim. Bem, como vou morrer
mesmo, não custa experimentar. – retrucou o Soldado Velho.
- Tenha mais fé, Soldado Velho.
Confie na ajuda do Todo Poderoso. Vá lá dentro do celeiro, retire o fio de
barba, e fale com muita fé: - “Valha-me Rei das Formigas!” – ordenou o cavalo.
Mais uma vez obedecendo, o Soldado
Velho entrou no galpão, e atirando para o ar o fio de barba do Rei das
formigas, disse as palavras recomendadas.
Após algum tempo viu entrar pela
fresta da porta o Rei das Formigas. Chegando junto ao Soldado Velho, tomou
conhecimento da tarefa. Calmo e sereno recomendou:
- Soldado Velho. Durma tranqüilo.
Minha família separará grão por grão. Foste muito generoso conosco ao salvar
nossas vidas. Agora salvaremos a sua.
O Soldado Velho deitou-se sobre a
mochila e dormiu o sono dos justos.
O dia estava clareando quando o Novo
Rei e seu séqüito chegaram. Certo de que o enforcaria, e ao constatar que a
tarefa dada tinha sido cumprida, ficou tão furioso que pulava e gesticulava de
forma grotesca:
- Muito bem, seu Soldado Ancião!
Como sou magnânimo, voltarei mais tarde para decidir se te liberto ou não. Até
lá ficarás preso.
As horas custavam a passar. No meio
da tarde o prisioneiro foi chamado por um mensageiro do Novo Rei, que leu a
nova sentença contra ele:
- Sua majestade, o Novo Rei,
mandou avisá-lo que nesta noite terás de saltar, com teu cavalo, uma fogueira
de 30 metros
de altura. Caso consigas realizar mais essa tarefa, então ganharás a liberdade.
Mais uma vez o Soldado Velho se
desesperou. Foi correndo e chorando para junto do cavalo tordilho negro:
- Cavalo, o que faremos agora? Nós
dois vamos morrer queimados nessa fogueira! Desta vez não tem jeito mesmo!
- Calma, meu bom amigo. Lembra-te
da espada que ganhou daquela mulher que você ajudou? Ela não disse que a espada
é mágica, e que se for usada por um homem justo e bondoso, fará milagres? Tenha
fé, Soldado Velho. Pede ao Novo Rei a graça de morrer com sua espada na mão.
Eles não negam o último desejo de um condenado à morte! – disse o cavalo
confiante.
O Novo Rei atendeu ao pedido do
condenado, e repetindo ser um Rei magnânimo, determina a execução da sentença.
O
Soldado Velho montando o seu belo corcel, empunhando a espada, deu algumas
voltas ao redor da fogueira. O povo, surpreendentemente, gritava: - “Novo Rei
salve a vida do Soldado Velho!”.
Como o novo Rei nada dizia, o
Soldado Velho afastou-se alguns metros e galopou para saltar sobre a fogueira.
No meio do salto, levantou a espada e gritou com toda a sua força:
- Valha-me Deus Todo Poderoso!
Nesse momento uma luz muito forte brilhou. O cavalo sumiu, e
o Soldado Velho, de espada em punho, foi levado pelo ar até à frente do Novo
Rei. Encostando a espada no peito dele, gritou:
- Novo Rei está deposto! Que o
nosso velho e querido Rei reassuma a coroa e reine perante o seu povo!
Nesse
momento o povo prendeu o Novo Rei, e o conduziu para o calabouço.
O Soldado Velho foi aclamado como Herói da Pátria,
reencontrou sua família, casou-se com uma das princesas e teve muitos filhos.
Viveu feliz por toda a vida exercendo o cargo de Conselheiro Militar do Reino.
-
F I M -
Moral
da história: “Sempre que
ajudamos a alguém, Deus encontra meios de nos retribuir.”
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